Do Adiberj.
(ILUSTRAÇÃO) |
Acabamos de sair de um
processo eleitoral que impactou intensamente a opinião pública. Deixando de
lado certas posições históricas, os evangélicos brasileiros se envolveram de
modo inusitado com os grandes temas em debate. A internet foi palco de manifestações
profusas e candentes por parte dos mais diversos líderes e grupos religiosos. A
igreja católica adotou posturas firmes e incisivas em relação a certos valores
essenciais que considera ameaçados. Em meio às grandes diferenças nos
posicionamentos, surgiu um consenso muito evidente. Não é mais possível ficar
indiferente ao debate político e ao processo político, porque ele produz
consequências que afetam a todos. Os acontecimentos dos últimos meses têm
levado os cristãos de todos os matizes a uma reflexão séria sobre a relação
entre igreja e estado, fé e política. Quando se olha para a história, é
possível ver algumas posições bastante distintas quanto a essa questão.
Afastamento
Ao longo dos séculos,
muitos cristãos têm optado por se distanciar da esfera pública, dos círculos de
poder e influência relacionados com o estado e a atividade governamental. No
período antigo e na Idade Média, um bom exemplo disso foi o monasticismo.
Aqueles que abraçavam a chamada vida consagrada renunciavam explicitamente ao envolvimento
político para se dedicar a atividades contemplativas. No período da Reforma,
houve o caso dos anabatistas, que tinham entre seus princípios fundamentais o
não envolvimento com a esfera política. Os partidários desse movimento
protestante não exerciam cargos públicos, não faziam juramentos cívicos, não
participavam das forças armadas e defendiam a mais absoluta separação entre a
igreja e o estado.
Monges e anabatistas justificavam a sua posição isolacionista afirmando que o
envolvimento político era corruptor e prejudicial para a verdadeira
espiritualidade. Os cristãos fariam bem em se manter distantes de um terreno em
que a venalidade, as intrigas e as lutas pelo poder eram quase inevitáveis. O
problema é que, com esse afastamento, eles perdiam a oportunidade de exercer
sua influência cristã nessa área tão decisiva. A Escritura certamente não
autoriza essa atitude de isolamento, exortando os crentes a participarem
ativamente da vida de suas comunidades. Alguns dos personagens bíblicos mais
destacados foram homens e mulheres públicos notáveis que deram valiosas
contribuições às suas sociedades. José, Débora, Davi, Salomão, Josias, Daniel,
Ester e Neemias são bons exemplos.
Subserviência
Ao longo da história da
igreja, os cristãos muitas vezes têm se envolvido com os poderes constituídos
ou se submetido a eles, por interesse ou por imposição. No antigo Império
Bizantino, os soberanos controlavam fortemente a igreja oriental ou ortodoxa,
situação essa conhecida como “cesaropapismo”. Quem tentava resistir a isso,
como o destemido bispo João Crisóstomo, que viveu em Constantinopla na passagem
do quarto para o quinto século, podia sofrer graves consequências. Na época da
Reforma, houve o fenômeno do erastianismo (de Tomás Erasto, seu defensor), que
se manifestou no forte controle da igreja pelo estado em diversas nações
protestantes. Em países católicos ocorreram os fenômenos paralelos do padroado
e do regalismo. Com sua ênfase na separação das esferas civil e religiosa e sua
grande reverência pelos governantes seculares, os protestantes alemães correram
por vezes o risco de ficar passivos diante da tirania, como ocorreu no período
nazista. O pastor Dietrich Bonhoeffer e outros líderes pagaram com a perda da
liberdade ou da vida a sua resistência contra esse sistema iníquo e diabólico.
A subserviência ao
estado ou ao poder político pode adquirir formas sutis e perigosas. Em
contextos altamente ideológicos, como a América Latina contemporânea, muitos
cristãos têm assumido compromissos questionáveis com partidos e regimes
políticos marcados por tendências autoritárias e violações das liberdades
democráticas. Os cristãos precisam entender que contrair vínculos sem reservas
com qualquer grupo ou líder político é uma forma de idolatria que viola a
integridade do evangelho. Só Jesus Cristo é Senhor supremo da vida e da
consciência. Esse é um alerta necessário numa época em que lideranças
messiânicas e populistas novamente seduzem as massas de muitos países, fazendo
com que se esqueçam das lições da história.
Envolvimento crítico
Muitos cristãos de
diferentes persuasões confessionais têm adotado uma posição intermediária e
mais saudável em contraste com as anteriores. Evitando tanto o isolamento
quanto o servilismo, eles têm procurado viver plenamente as suas vidas em sociedade,
participar das oportunidades e angústias da atuação cívica e política, mas ao
mesmo tempo mantendo suficiente espírito crítico que lhes permita um
posicionamento profético em relação a qualquer partido, sistema ou regime
vigente. O exemplo do bispo João Crisóstomo já foi mencionado. Essa também foi
a postura do reformador João Calvino. Havia forte interação entre igreja e
estado na Genebra do século 16; todavia, quando esse líder religioso sentiu que
os governantes estavam violando princípios claros da Escritura e da fé cristã,
ele não se intimidou em censurá-los. No início da sua carreira, tal atitude
resultou na sua expulsão daquela cidade suíça.
O envolvimento dos
cristãos com a esfera política e partidária sempre será uma faca de dois gumes.
A tentação de obter vantagens pessoais e corporativas em detrimento do bem
coletivo está sempre presente. A possibilidade de usar o poder político e
econômico como instrumento de dominação e manipulação é uma constante. Por
outro lado, existem maravilhosas oportunidades de trazer sanidade, integridade
e altruísmo a um campo tão marcado pela corrupção humana. Multiplicam-se na
história exemplos de cristãos que fizeram de sua atuação pública um verdadeiro
sacerdócio, beneficiando grandemente os seus contemporâneos. Foi o caso do
parlamentar William Wilberforce em sua luta contra o tráfico escravagista na
Inglaterra do século 18. Foi o caso do primeiro-ministro Abraham Kuyper na
Holanda do início do século 20. Foi também o caso do pastor Martin Luther King
em sua defesa dos direitos civis dos afroamericanos.
Conclusão
Neste período de
transição governamental, o Brasil vive dias de expectativa e apreensão. Ao lado
de valiosas conquistas sociais, da estabilidade e pujança da economia e de
maior presença no cenário internacional, alguns comportamentos da administração
que se encerra, alguns objetivos programáticos do partido no poder e alguns
projetos de lei em debate no Congresso Nacional têm produzido motivos justos de
preocupação, tanto para os cristãos, como para a coletividade em geral. É
necessário que haja a continuação e aprofundamento do debate sobre temas
candentes, como o aborto, a homofobia, a ética na política, as relações
internacionais e as liberdades de consciência e de expressão, sem jamais
esquecer-se da luta em prol da justiça social, da criação de uma sociedade mais
fraterna. Os cristãos têm muito a dizer sobre essas questões porque elas fazem
parte das suas preocupações desde o início e dizem respeito às convicções e
valores mais profundos de sua fé. Todavia, sua voz somente será ouvida se
saírem de seus guetos eclesiásticos e participarem corajosamente das lutas de
uma sociedade em transformação, correndo riscos sim, mas crendo no poder
transformador do evangelho não só para os indivíduos, mas para as nações.
Por Alderi Souza de
Matos
Doutor em história da
igreja pela Universidade de Boston e historiador da Igreja Presbiteriana do
Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário