Por Hermes C. Fernandes.
CARNAVAL. Quando eu era criança, era inadmissível que um cristão
sequer pensasse brincar carnaval. Aquela era a festa pagã por excelência. Por
isso, se quisesse saber se alguém estava ou não firme na igreja ou desviado
(como se costumava dizer), bastava verificar se ele pularia carnaval naquele
ano. Lembro-me de alguns que se ‘desviavam’ pouco antes do Carnaval, e se
reconciliavam com a igreja pouco depois.
Hoje as coisas são diferentes. Já há até blocos carnavalescos
gospel. Portanto, ninguém precisa se desviar para brincar. E ainda por cima, se
sai bem com a sua consciência, alegando tratar-se apenas de uma estratégia
evangelística. A gente "ganha almas" e ainda se diverte. Quer coisa
melhor?
Creio haver posturas bem diferentes concernentes à relação do cristão
com o Carnaval.
A primeira é a clássica. Cristão não pula Carnaval e ponto. Não
se fala mais nisso. Para muitos que adotam tal postura, o Carnaval não é apenas
a festa da carne, mas também dos demônios. Por isso, preferem se abster
completamente. Não assistem aos desfiles das escolas de samba nem pela TV.
Mantêm as janelas da casa fechadas para não verem os blocos passarem. Muitos
aproveitam para viajar com a família, se possível, para lugares onde não haja
nem cheiro de Carnaval. Outros, vão para os retiros promovidos pelas igrejas.
Respeito profundamente quem adote esta postura, mesmo porque, esta foi a minha
postura durante maior parte da minha vida. Nasci e cresci em berço evangélico.
Nunca pulei Carnaval. Mas durante a adolescência, não pude evitar dar uma
espiadinha no que acontecia na avenida e nos bailes televisionados pelas
madrugadas em busca do que pudesse saciar minha curiosidade juvenil.
O problema da proibição é que ela atiça. A psicologia está aí
para comprovar isso: tudo o que é proibido é mais gostoso. Portanto, proibir
não vai adiantar nada. Pelo contrário, só vai tornar o Carnaval ainda mais
tentador para o cristão, levando-o a cobiçar o que há de pior na festa da
carne.
Além do mais, a abstinência carnavalesca gera certo orgulho no
coração de muitos cristãos. Algo do tipo que vemos esboçado na oração do
fariseu na parábola de Jesus. Ainda que não haja as mesmas palavras, o
sentimento é o mesmo. Veja como ficaria essa oração atualizada:
“Senhor, graças te dou porque não sou como esses foliões que
desperdiçam quatro dias de suas vidas se divertindo na festa da carne. Graças
te dou porque não sou um despudorado como aqueles que pulam carnaval seminus,
que se entregam aos prazeres libidinosos... São mesmo uns tolos... Mas
bem-feito pra eles! A alegria deles só dura até a quarta-feira de cinzas,
enquanto a minha durará para sempre. Tomara que peguem uma doença! Tomara que
chova no dia do desfile. Tomara que o carro alegórico enguice em plena avenida.
Enquanto eu fico aqui no meu canto me deleitando em minha justiça própria e me
orgulhando de minha santidade.”
Se você não gosta de Carnaval, ou se o reprova considerando-o um
acinte à fé cristã, simplesmente não brinque. Mas não se sinta melhor do que os
que brincam. Nem desdenhe de sua alegria, ainda que passageira. Sem querer
espiritualizar demais, ore por eles, para que Deus os guarde enquanto brincam.
Se quiser abster-se, faça-o por amor a Cristo, se entende que isso, de alguma
maneira, irá agradá-lo. Mas jamais faça para sentir-se melhor do que ninguém.
Do outro lado do espectro, encontramos os que aderem à
celebração carnavalesca por acharem ser compatível com a sua fé e vivência
cristã. Creem que é possível brincar, sem entregar-se aos prazeres carnais.
Vestem sua fantasia, seguem blocos animados, levam seus filhos a bailinhos, mas
procuram manter uma postura que não firam os princípios e valores do evangelho.
Há que se tomar redobrados cuidados porque ambas as posturas
incorrem em seus próprios riscos. Se a primeira, esbarra no legalismo farisaico,
a segunda tem grande potencial de empurrar-nos na vala da libertinagem,
expondo-nos a tentações para as quais não tempos “defesa imunológica.” Nossos
“anticorpos” espirituais não foram devidamente ativados, principalmente quando
nascemos e crescemos em berço cristão. Aí, cumpre-se o que diz o adágio: “Quem
nunca comeu melado, quando come se lambuza.”
Ademais, os que adotam tal postura sofrem o assédio do mesmo
orgulho encontrado nos que preferem se abster. Se os primeiros se sentem mais
santos, esses se sentem mais “cool”, descolados, antenados ao espírito de sua
época.
Paulo diz que não devemos usar da liberdade que a graça nos
oferece para dar ocasião à carne (Gálatas 5:13). E isso é o que fazemos, não
quando usamos ou deixamos de usar uma fantasia, ou quando pulamos ou deixamos
de pular Carnaval, mas quando nos deixamos motivar pelo orgulho e não pelo
amor.
A controvérsia do Carnaval bem que poderia ser comparada à
controvérsia envolvendo a dieta dos cristãos na época de Paulo. Parafraseando o
apóstolo, poderíamos dizer:
“Um crê que pode brincar Carnaval, e outro, prefere abster-se. O
que brinca não despreze o que não brinca; e o que não brinca, não julgue o que
brinca; porque Deus o recebeu por seu. Quem és tu, que julgas o servo alheio?
Para seu próprio senhor ele está em pé ou cai. Mas estará firme, porque
poderoso é Deus para o firmar. Um faz diferença entre dia e dia, e se solta
durante os dias de Carnaval, mas outro julga iguais todos os dias, entendendo
que sua alegria não depende de um calendário. Cada um esteja inteiramente
seguro em sua própria mente (...) Porque nenhum de nós vive para si, e nenhum
morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o
Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor (...)
Mas tu, por que julgas teu irmão? Ou tu, também, por que desprezas teu irmão?
Pois todos havemos de comparecer ante o tribunal de Cristo (...) De maneira que
cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus. Assim que não nos julguemos mais
uns aos outros; antes seja o vosso propósito não pôr tropeço ou escândalo ao
irmão. Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de si mesma
imunda, a não ser para aquele que a tem por imunda; para esse é imunda. Mas, se
por causa do Carnaval se contrista teu irmão, já não andas conforme o amor. Não
destruas por causa da tua folia aquele por quem Cristo morreu (...) Sigamos,
pois, as coisas que servem para a paz e para a edificação de uns para com os
outros. Não destruas por causa do Carnaval a obra de Deus. É verdade que tudo é
limpo, mas mal vai para o homem que brinca com escândalo. Neste caso, é melhor
nem pular Carnaval, nem encher a cara, nem fazer outras coisas em que teu irmão
tropece, ou se escandalize, ou se enfraqueça. Tens tu fé? Tem-na em ti mesmo
diante de Deus. Bem-aventurado aquele que não se condena a si mesmo naquilo que
aprova. Mas aquele que tem dúvidas, se brinca Carnaval está condenado, porque
não brinca por fé; e tudo o que não é de fé é pecado.” Romanos 14:1-23
Se estiver pensando em pular Carnaval só para magoar alguém, não
o faça. Se estiver pensando em pular Carnaval para insultar seu pastor, sua
comunidade, sua família, não o faça. Se a ideia é virar o assunto do dia entre
os irmãos na fé, escandalizando-os, não o faça.
Que o que lhe mova seja o amor. Não importa se vai seguir o
bloco, ou até se vai à avenida assistir ao desfile das escolas de samba, ou se
prefere ficar em casa vendo Netflix ou em um retiro espiritual com o pessoal da
igreja, a única coisa que realmente importa é que o que lhe mova seja o amor,
primeiro a Deus, e depois ao seu próximo. Não julgue quem quer que seja. Não se
sinta melhor do que os demais. Não esfregue sua liberdade na cara de ninguém.
Apenas, ame. E caso opte por brincar, não custa nada lembrar que seu corpo é o
templo do Espírito Santo, então, não o profane, e não permita que ninguém o
faça. Não é não! Aja com amor e responsabilidade. Respeite e dê-se o respeito.
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